Analfabetismo motor: Um convite à discussão
Prof. Márcio Abensur* |
Os vícios da vida moderna têm
levado cada vez mais nossas crianças a adotarem uma vida sedentária, reforçada
pela imagem do homem moderno que a mídia corporativista projeta com tanta
prioridade e propriedade. Como se não bastasse, o estímulo escolar também
parece responder a esta tendência de comodismo, o que afeta não só a educação
em si, mas também a saúde infantil.
Hoje não é comum notarmos
crianças subindo em árvores, correndo num gramado, ou mesmo dando cambalhotas.
Podemos até arriscar a perguntar se hoje em dia nossas crianças sabem fazer
tais coisas que outrora já foram muito comuns, o que desmente qualquer
tentativa de justificar a incapacidade de realizar certas tarefas com o
discurso de limite humano, por exemplo.
Enquanto isso, na escola, em
meio à preocupação em resolver o problema do analfabetismo (cognitivo), por
exemplo, outra classe de analfabeto surge sem que haja qualquer percepção ou reação
por parte do professor. É o analfabeto motor, moldado a partir de práticas
baseadas num pensamento onde o homem evolui na medida em que sua capacidade
cognitiva avança.
Definimos analfabetismo motor
como a consequência de uma prática educacional reducionista, que priva o
indivíduo da vivência motriz e, consequentemente, do desenvolvimento das
capacidades e habilidades de um ser detentor de potencialidades integrais,
limitando-o à cognição reduzida ao raciocínio. Um bom exemplo é a lateralidade.
Ensina-se nos cursos para docente dos segmentos iniciais da educação básica que
a lateralidade é uma propensão do sujeito em utilizar mais um lado do corpo que
outro. Porém, os estudos deixam claro que esta propensão pode atingir os dois
lados desse corpo, podendo definir-se como homogênea, cruzada ou ambidestra.
O que chama a atenção é que, na
prática, tal importância acaba se tornando irrelevante, afinal, o fator
lateralidade está necessariamente relacionado ao movimento. E mesmo com o
respaldo dos vários referenciais que tratam sobre lateralidade, o educador
acaba por seguir a tendência do incentivo à preferência por apenas um dos
lados. O mais interessante é que a própria escola assume que “produz” sujeitos
limitados, quando a partir de determinada série, oferece carteiras escolares
predominantemente voltadas para alunos destros. Para os sinistros, quando
existem, os assentos são em número bem pequeno.
O CÉREBRO CANHOTO
Note na tabela a seguir que o
hemisfério esquerdo oferece os meios necessários ao desenvolvimento das
capacidades cognitivas, o que justifica sua hegemonia em relação ao hemisfério
direito, já que a grande maioria das pessoas sofre influência do paradigma
cartesiano, que se baseia no raciocínio lógico, linear e sequencial.
Por outro lado, o hemisfério
direito apresenta funções que caracterizam o todo, o integral, a emoção, a
intuição, a criatividade, a capacidade de ousar soluções diferentes. Como o
hemisfério racional é mais usado, os benefícios do hemisfério direito, como a
imaginação criativa, a serenidade, visão global, capacidade de síntese,
facilidade de memorizar, dentre outros, não são usufruídos. Tudo porque nossos
sistemas escolares são estruturados para o desenvolvimento de práticas típicas
do hemisfério esquerdo, como as disciplinas oferecidas (verbais e numéricas),
com as quais os alunos aprendem a ler, escrever e contar. Assim, podemos notar
uma “hegemonia” do hemisfério esquerdo sobre o direito, consequência da
limitação que o homem impõe a si mesmo em poder explorar o próprio potencial.
Para que possamos entender de
forma mais ampla as funções cerebrais, citaremos uma experiência que
proporcionou a caracterização específica de cada hemisfério.
Dean C. Delis, pesquisador da
University of California, em San Diego, e colaboradores, pediram que alguns
pacientes com danos cerebrais observassem o desenho de uma letra H maiúscula
composta de diminutos A (figura ao lado) e depois redesenhá-la de memória. Os
pacientes com danos no hemisfério direito, na maioria das vezes, apenas
rabiscavam letras A pela página. Os pacientes com danos no hemisfério esquerdo,
simplesmente desenharam um grande H maiúsculo sem nenhuma outra letra.
Isto mostra que o hemisfério
esquerdo do cérebro humano caracteriza estímulos com um ou vários detalhes,
enquanto o direito sintetiza padrões globais.
Em termos de comunicação entre
cérebro e corpo, sabemos que o hemisfério esquerdo controla o lado direito do
corpo e o hemisfério direito controla o lado esquerdo. Desta forma, a mão
esquerda é ligada ao hemisfério direito e a mão direita ao hemisfério esquerdo.
O cérebro humano é complexo e é
fato que precisa ser conhecido por quem se propõe a educar principalmente
crianças. Infelizmente, é um fato que parece passar despercebido no meio
educacional escolar, pois o próprio professor de educação infantil e anos
iniciais do ensino fundamental (diga-se de passagem, fase mais complexa do
desenvolvimento) desconhece as bases científicas necessárias ao entendimento do
processo de aprendizagem humana integral, pois não possui em sua base formativa
conteúdos que lhe proporcionem conhecer o processamento da linguagem ou da
escrita, por exemplo, em nível neurológico, fisiológico, biomecânico ou
anatômico.
A área de Wernick, no córtex
cerebral, é responsável pela organização de grande parte desse conteúdo
linguístico, enviando as informações à área motora, que definirá os grupos musculares
que efetuarão a ação. Isto significa que a linguagem oral ou escrita é um
trabalho complexo, num organismo complexo, não se caracterizando apenas pela
emissão de sons ou pelo manusear de uma caneta, numa simples visão pedagógica.
Em outras palavras, a escrita desenvolve-se a partir de um conjunto de fatores
interligados e interdependentes, tendo sua rede neural no cérebro, e não apenas
na mão direita. Significa também que o corpo como um todo pode “escrever”, a
partir da ordem motora cerebral, e com qualquer segmento que possua anatomia
que permita manipular um lápis, caneta, pincel, ou outro, pode gerar grafia.
Então, se o ser humano é
complexo e com capacidades incontestáveis, por que deve usar apenas “meio
cérebro” quando pode usá-lo por completo? Enquanto isso, os analfabetos motores
continuam em sua formação inocente e dissimulada, frutos de uma educação
paradoxal que prega o desenvolvimento integral do aluno, mas o limita em suas
capacidades.
* Docente do Instituto Federal do Amazonas, campus Tabatinga;
Profissional de Educação Física; Especialista em Psicomotricidade; e Mestrando
em Motricidade Humana e Saúde.
E-mail:marcioabensur@ifam.edu.br
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